Artigo de opinião – Atlântica News – novembro 2017

Ipsis verbis ou A história dos nossos melhores alunos

São 6h00 da manhã. O João acorda com o despertador do seu smartphone. Apressa-se e desliga-o rapidamente. Prefere que os filhos acordem com um beijo seu. Não com um toque polifónico. Não gosta do toque. Nunca gostou. Talvez por isso, acorde sempre a horas. A sua esposa dorme. Deitou-se tarde uma vez que tinha um relatório para concluir. Só o fez depois de deitar os filhos, um com quatro anos e outro com oito. Está arrasada. Dorme porque sabe que o seu despertador lhe confere trinta minutos extra de descanso. Moram na periferia da cidade, talvez numa zona industrial. Às 6h45 o João sai de casa. Vai de carro para a empresa. Foge ao trânsito. É o primeiro a chegar. Muitas vezes, o último a sair. A sua esposa sai ligeiramente mais tarde. Leva o filho mais novo para o infantário e deixa o mais velho na escola. Depois, deixa o carro na estação e segue de comboio para o emprego. De outro modo, como poderia chegar a horas ao trabalho depois de deixar os filhos na escola e no infantário?

São 7h00 da manhã. A Rita acorda. Mora na cidade mas a sua família mora no interior do país. Arrendou uma casa dividindo a despesa com duas raparigas. É uma solução. Vive um reality show diário. Todavia, felizmente dão-se bem. Não é fácil dividir o espaço. Por isso mesmo, há regras lá em casa. Têm uma lista de tarefas que cumprem em prol de um saudável ambiente. Sai nas calmas de casa optando por tomar o pequeno almoço numa esplanada que fica perto do local de trabalho. Alinha likes pendentes nas suas redes sociais enquanto come. De igual modo, espreita no face publicidade sobre voos domésticos com preços low-cost. Se conseguir um bilhete de avião barato para o próximo fim de semana tem mais tempo para estar com a família. Dada a distância e o preço das portagens, compensa.

São 8h00 da manhã, o Pedro não quer acordar. Não precisa. É solteiro e vive com os pais. Já trabalhou numa empresa de computadores. É assim que responde quando lhe perguntam. Agora não há nada. Mas há vontade de aprender. No LinkedIn apresenta-se como CEO dele próprio. Estar no LinkedIn é bom. Faz-se rede. Espreitam-se empregos que aparecem lá fora. Dois amigos seus “safaram-se”. Foram para o estrangeiro. Estão numa boa empresa. O Pedro não tem ainda um curso superior. Quando o concluir pensa em sair do país. Estuda à noite. Todavia, durante o dia, sempre que pode, é aluno de MOOCs[1]. É um técnico fantástico. Autónomo e autodidata. Quando não sabe, pergunta ao Google. Através de MOOCs aprende gratuitamente. Nesses cursos online completa ciclos de aprendizagem mas não os pode pagar e como tal não tem os certificados digitais das mesmas. Pelo menos para já. Isso não é importante, as competências sim. O Pedro ainda dorme. Provavelmente sonha… Talvez por isso a mãe não o acorde.

Estamos a meio da manhã. O João está a acompanhar um projeto que tem que entrar em produção no final do mês. É gestor de redes informáticas. É brilhante. Não há melhor. Acumula certificações técnicas emitidas pelas melhores entidades de formação. Tem recebido várias propostas para trabalhar no estrangeiro. Não as aceita uma vez que não larga a família. Os miúdos crescem. Nenhum salário é melhor que ver os miúdos crescer.

 

A Rita é gestora de loja. Trabalha para uma conhecida marca de roupa. Gere recursos como ninguém. É uma pequena peça na engrenagem de uma multinacional. Estuda. Estuda muito. Principalmente BI[2] por ser uma área que a fascina. É ágil. Gere dilemas que surgem todos os dias entre colaboradores e decide rapidamente. É respeitada. Tem ideias. É valorizada por isso. Todavia, nem sempre as pode aplicar na organização. Sonha com uma transição para o departamento financeiro. Isso sim, longe dos balcões de atendimento ao público, focada na sua verdadeira área motivacional. Um dia, talvez. Por outro lado, a mobilidade é tentadora. Logo, sair do país é uma hipótese.

O Pedro acordou. Estamos a meio da manhã. A mãe prepara-lhe o pequeno-almoço e enquanto isso envia um mail à Rita e ao João. O que os une é a mesma turma no curso superior que frequentam em regime noturno. São colegas. Há um trabalho para fazer. Em grupo. É preciso alinhar estratégias para concretização do mesmo. O Pedro faz isso muito bem. Ele sabe que a Rita não consegue ter acesso a um PC durante a manhã e o João deve estar em reunião para variar. Todavia, marca posição, ajuda os colegas, antecipa e define prioridades, propõe divisão de tarefas. O teor do mail é isso mesmo, uma agenda para a realização do trabalho. Propõe um encontro entre todos às 18h00. É a hora possível antes do inicio das aulas.

Encontram-se ao final do dia, como combinado. O João veio mas “não está cá”. O projeto na empresa está a dar problemas e ainda vai ter que regressar ao local de trabalho quando as aulas acabarem. A isto, some-se um novo facto: o filho mais novo está com uma virose que apanhou no infantário. Todavia, a sua esposa acabou de lhe enviar uma mensagem. O João lê em voz alta: “Ele está melhor, não te preocupes, quando chegares ainda estou acordada”.

A Rita desabafa: “Consegui um voo low-cost para o final da semana!”. Partilham as histórias do dia… São colegas e amigos. Faz parte. Motivados, começam finalmente a reunião de trabalho.

Para um grande número de alunos, a mudança de contexto entre a vida pessoal, profissional e académica é um desafio. Exige resiliência e uma eficaz gestão do tempo. De igual modo, inquestionavelmente, trata-se de um esforço físico considerável.

O cenário é este. Mas poderia ser outro com contornos similares.

Como resultado da reunião, o João, a Rita e o Pedro decidem falar com o professor. De alguma forma, consideram que o trabalho pode ser realizado em moldes ligeiramente diferentes relativamente à proposta feita pelo mesmo. No fundo, o João e a Rita conseguiram encontrar convergência nas suas áreas profissionais de modo a trabalharem em equipa aplicando e desenvolvendo o seu know-how. O Pedro concordou e será um elemento fundamental para operacionalizar o trabalho realizando um programa informático em conformidade. Ora, se a proposta cumpre os objetivos pedagógicos levanta-se uma questão: o professor aceitará?

As estratégias de ensino devem valorizar a capacidade profissional dos alunos. Em contexto universitário, frequentado por alunos muitas vezes trabalhadores-estudantes munidos de elevadas competências técnicas em áreas específicas, o professor deve estar preparado para aprender com os mesmos.

Desta abertura resultam sinergias de aprendizagem individual e/ou de grupo que de outro modo não ocorreriam. Todavia, o professor tem que estar sensível ao contexto onde estão inseridos os seus alunos.

Então, em articulação e diálogo, só assim é que o professor pode exercer academicamente o papel de orientador. Esta orientação requer dinâmicas específicas em função do perfil do aluno. Trata-se de maximizar o potencial, a motivação e o know-how de cada individuo. Cada caso é um caso.

Procurar uma abordagem pedagógica essencialmente construtivista é partir para cada aula com base na premissa de que todos construímos a nossa perspectiva do mundo através da experiência individual e da estrutura mental do conhecimento que cada um possui (professores e alunos).

Sejamos humildes. A aprendizagem é um processo ativo de criação. Ou melhor, de cocriação. Perceber isto, é o momento decisivo. Não de Bresson, mas para qualquer professor atento que tem a felicidade de trabalhar com alunos deste ou de outros perfis.

Some-se que neste processo, os sistemas de informação digitais aceleram todas as curvas de aprendizagem (recordemo-nos da história do Pedro que aprende durante o dia com MOOCs).

Então, o professor não é o centro do saber mas sim um agente facilitador da aprendizagem. O seu papel é estimular o rigor intelectual e contribuir para o desenvolvimento da autonomia do aluno e respetivas competências. Este último, assume-se então como o principal responsável pela construção do seu próprio conhecimento que é relativo uma vez que varia de pessoa para pessoa.

Nesta interação surge a oportunidade para centrar processos de ensino-aprendizagem valorizando oportunidades provenientes dos contextos profissionais dos alunos. Por exemplo, ajudando os mesmos a resolverem problemas da empresa que normalmente estariam longe das suas capacidades por falta de base científica ou visão holística.

O professor deve estar preparado para criar estas pontes. Motivar o aluno. Assim, ao encarar o problema como um problema próprio, o aluno encontra o seu espaço de automotivação e está alinhado com a realidade. De resto, este processo é essencial num quadro de aprendizagem ao longo da vida.

Ao valorizar, integrar e desenvolver as competências profissionais dos seus alunos, a proximidade da universidade com a realidade da empresa é um fator que contribui ativamente para o desenvolvimento do país. O professor não se pode demitir deste papel. Deve estar apto a (re)conhecer a realidade de cada ser humano, que em contexto académico, neste caso veste o papel social: aluno.

Momento decisivo: os alunos aguardam uma resposta. O professor compreende a pertinência da mesma. A proposta cumpre os objetivos pedagógicos e tem elevada aplicabilidade em contexto profissional. É um caso de estudo na universidade e leva valor à organização. O professor aceita a proposta.

O João, a Rita e o Pedro, são o melhor que o nosso país tem.

As universidades devem perceber isto e as empresas também.

São 23h00. As aulas terminaram. A Rita e o Pedro bebem um café juntos antes de regressarem a casa. O João segue para a empresa a correr. Há um problema pendente. Às 2h00 da manhã chega a casa. A esposa ainda acordada espera-o. Os miúdos dormem.  Uma refeição ligeira aguarda-o. Deita-se de seguida.

São 6h00 da manhã. O João acorda com o despertador do seu smartphone. Apressa-se e desliga-o rapidamente.

Prefere que os filhos acordem com um beijo seu.

 

Prof. Doutor Alexandre Barão, docente da Atlântica

 

[1] Massive Open Online Course

[2] Business Intelligence

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *